Rhodes, estátuas e o legado colonial na metrópole

Gostaria de compartilhar algumas ideias acerca do que está acontecendo essa semana no Reino Unido. No dia 7/6 em Bristol a estátua de Edward Colston foi derrubada por manifestantes do movimento Black Lives Matter.

Colston era um grande mercador de africanos cativos, onde negociou mais de 80 mil escravizados para a Jamaica e sua estátua marcava o centro da cidade desde depois de sua morte em 1820.

 Para entender melhor o que aconteceu com Colston, precisamos falar de Cecil Rhodes.

 Rhodes foi um grande magnata dos diamantes, imperialista e primeiro ministro da colônia do Cabo, atual África do Sul de 1890 a 1896, quando criou e implementou leis de segregação racial entre os locais e os europeus colonizadores. Ele foi um dos fundadores da colônia de Rodésia (hoje Zimbábue em Zâmbia), tanto que foi nomeada usando seu nome.

 Em 2015 A Universidade da Cidade do Cabo, depois de forte pressão do movimento de universitários chamado “Rhodes Must Fall” decidiu tirar a estatua que tinha em prominência na entrada do prédio principal homenageando o imperialista Cecil Rhodes.

artefato brazilin art

Rhodes em vida criou um programa de bolsas de pós-graduação para Oriel College, Universidade de Oxford, no proposito de manter o Império Britânico unido enviando estudantes brancos da colônia para depois serem parte da máquina burocrata colonial. Uma fundação foi criada depois de sua morte em 1902 e ate hoje continua proporcionando bolsas de estudo de pós-graduação de estudantes do mundo inteiro.

 Um desses bolsistas, Ntokozo Qwabe da Universidade da Cidade do Cabo, trouxe ideias que fomentaram na criação do mesmo movimento a partir do legado de Rhodes na Universidade de Oxford, incluindo sua controversa estatua na Oriel College.

 De acordo com seu website,  Rhodes Must Fall Oxford “é um movimento determinado a decolonizar o espaço, currículo, memória institucional e lutar contra opressão interseccional dentro da Universidade de Oxford. “Desde 2015 veem abrindo a discussão sobre o passado colonial das instituições do Reino Unido. A abolição da escravidão em UK aconteceu em 1833 e o governo da época indenizou donos de escravizados e esse dinheiro ajudou a financiar muitas instituições como universidades, museus e também empresas privadas que funcionam ate hoje como o banco Lloyds.

Em 2016 a universidade de Oxford negou o pedido de retirada da estatua de Rhodes do Oriel College alegando que seria querer reescrever a história e que mesmo que entendem que Rhodes era uma figura complexa eles manteriam sua posição conservadora de manter a estatua onde estava.

O Centro de Estudos do Legado de Propriedade Escravocrata Britânico da University College London fez um levantamento e encontrou ainda 2 estatuas de proprietários de escravos em Londres: Robert Milligan na frente do Museu de Londres Docas e Alderman William Beckford dentro da Prefeitura da City of London.

 

No dia 9/6 o prefeito de Londres Sadiq Khan anunciou um estudo da prefeitura sobre o legado colonial e escravocrata de todos os monumentos de Londres. No mesmo dia, a subprefeitura de Tower Hamlets decidiu retirar a estatua de Milligan da frente do museu. 

milligan docklands

Também houve uma manifestação na frente da Oriel College em Oxford onde se encontra a estátua de Rhodes. 

Em Glasgow na Escócia, manifestantes renomearam ruas com ligações ao comercio escravocrata do Atlântico, relembrando aos escoceses o legado do país durante o processo do comercio atlântico de cativos:

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Na Antuérpia, Bélgica - no outro lado do Canal - a estátua de Leopold II, o rei que teve o Congo como propriedade privada durante o séc XIX, foi queimada para depois ser retirada pela prefeitura.

 O legado do Império Britânico, a discussão no país e uma maneira de trabalhar o tema

Pesquisa da YouGov de 2016 concluiu que 44% da população do Reino Unido tem orgulho do colonialismo e do Império Britânico. O currículo escolar inclui muito pouco sobre o império britânico e tenta focar nos elementos que são considerados positivos pela população - como o Estado e Direito (rule of law) e a malha ferroviária na Índia e na África.

 O que está acontecendo é bastante significativo. “a retirada da estatua de Colston não é um ataque à história, isso é História” afirma historiador David Olusoga, que mora em Bristol e estuda a escravidão e o trafego atlântico – famoso por seus documentários na BBC. Pelo país inteiro de repente conselhos municipais se viram na obrigação de revisitar os seus acervos de monumentos tentando entender como melhor agir diante desses acontecimentos.

 O Hyundai Commission de 2019, projeto de comissão de obras de arte para o Tate Modern de Londres, foi entregue a Kara Walker, artista estadunidense que trabalha com tema de raça, decolonialidade e o legado da escravidão transatlântica. Kara trabalha sobre as lutas pelo poder, história e mitologias que nos guiam na maneira de vermos nos mesmos e outros, com foco em raça e gênero.

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 Fons Americanus foi inspirado no Memorial Vitoria na frente do Palácio de Buckingham, Londres. O memorial foi projetado em 1901 e inaugurado em 1911 em honra às realizações da Rainha Vitoria, que foi a Rainha do Reino Unido da Grã-Bretanha e Irlanda (1837-1901) além de Imperatriz da Índia. Em vez de uma celebração do Império Britânico, a fonte de Kara inverte a função comum de um memorial e questiona narrativas de poder. Kara Walker explora as histórias interconectadas de África, América e Europa. Ela usa água como tema chave, se referindo ao comercio escravocrata transatlântico e suas ambições, desfechos e tragédias do povo desses 3 continentes. Juntando fato, fantasia e ficção, Fons Americanus se ergue como uma representação dessa narrativa na forma de uma alegoria ou fabula.

Na época que fui visitar o Fons Americanus, estava lendo Escravidão vol. I do Laurentino Gomes. O que mais me impressionou foi o tamanho e os tubarões da obra, que de acordo com Laurentino acompanhavam os navios negreiros já que a mercadoria desses navios – os africanos escravizados – morriam com muita frequência e eram jogados ao mar.

 A proposta de Kara Walker através desse e outros trabalhos é bem certeira e deve ser levada em consideração nesse momento que discutimos novas narrativas e discursos. Precisamos decolonizar e ressignificar espaços para que possam incluir outras narrativas e histórias, levando em conta que as feridas desse sistema desumano continuam abertas.

 Veja o vídeo sobre a obra produzido pelo Tate Modern:


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